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CENAS E TEXTOS: LUGARES MÓVEIS

 

Luis Alberto Brandão

 

 

É de trânsitos que trata este livro, de movimentos entre lugares que são, por si mesmos, móveis. São movimentos de movimentos o que aqui se descreve e se investiga. Há, é claro, um lugar central, que leva o nome de Caio Fernando Abreu. Porém, o que esse nome designa, sob a rubrica supostamente estável de obra, é variável. São essas variações que Daniel Furtado minuciosamente perscruta. O principal foco é, sem dúvida, o debate sobre o deslocamento observável na relação entre o texto literário e a encenação, entre um Caio literário e um Caio cênico. Mas tal debate não se esquiva de ressaltar que esses lugares, texto e cena, não são estáticos nem unívocos, já que se definem justamente pelo caráter dinâmico das significações que ambos produzem. Há vários Caios, tanto literários, quanto cênicos.

Para o desenvolvimento desse exercício de metamobilidade, ou seja, de um pensamento móvel sobre a maneira como o movimento ocorre e como implica em mudança qualitativa (pois é um movimento de transcriação), o livro propõe um sofisticado sistema de variáveis. Combinadas, elas designam os aspectos que ocupam o primeiro plano nos espetáculos “Pela noite”, “Rua das flores” e “Os dragões não conhecem o paraíso”, e nos textos com os quais dialogam (respectivamente, a novela “Pela noite”, o conto “Réquiem por um fugitivo” e uma colagem feita a partir de vários escritos de Caio Fernando Abreu).

A cada uma das três categorias básicas da teoria da narrativa literária ‒ tempo, espaço e sujeito ‒, cuja atuação é percebida como predominante em determinado texto (ou, no caso do espetáculo “Os dragões não conhecem o paraíso”, conjunto de textos), é associada uma noção fundamental ‒ palavra, corpo e imagem ‒, a qual se revela de alta produtividade para a leitura crítica de cada encenação. Esses pares de associações são desdobrados conceitualmente, por meio de ricas discussões teóricas, e analiticamente, mediante o cuidadoso cotejo de texto e encenação. O sistema proposto torna possível tanto verificar, no estudo comparativo de encenações e textos específicos, quais são os vetores de convergência e de divergência, quanto sugerir uma reflexão mais ampla sobre a natureza distintiva, singular, do evento literário e do cênico, bem como sobre o grau de correspondência dos mecanismos de significação que eles possuem em comum.

Nas obras que compõem o corpus da investigação, Daniel Furtado dá a ver precisamente os fatores de deslocamento, os quais já estão anunciados nos títulos dos textos e dos espetáculos. Mas há diferentes formas de deslocamento, produzidas por recursos e ênfases bastante diversos; e essa diversidade se observa tanto na configuração da obra propriamente dita, quanto na ligação entre obra literária e obra cênica. Dizendo-se de outro modo, todas essas obras podem ser consideradas narrativas, mas o que se revela na análise (de cada obra individualmente e em sua aproximação comparativa) é que elas são regidas por sistemas de narratividade específicos, baseados em recursos identificáveis em suas peculiaridades, e cujos efeitos são distintos. A exploração desses sistemas de narratividade abre espaço para debates estimulantes, como, por exemplo, sobre os efeitos realistas, simbólicos e oníricos proporcionados pelo campo literário e pelo cênico; sobre o papel, para as diferentes artes, da iconicidade e dos mecanismos de ênfase na materialidade sígnica; sobre uma possível dramaticidade cênica inerente à escrita de Caio.

Este livro demostra que, embora todas essas narrativas se vinculem a um mesmo nome, Caio Fernando Abreu ‒ nome que em princípio garantiria a unidade e a estabilidade da obra ‒, a diversidade dos sistemas de narratividade revela quão complexa é a própria noção de obra, tendo em vista sua natureza múltipla e aberta ao deslocamento. Essa demonstração é tornada ainda mais valiosa por incluir entrevistas com os responsáveis pela concepção e direção dos espetáculos analisados. Ao abrir sua voz de pesquisador a outras vozes que, a partir de distintos prismas, desejos e questões, também interpelam crítica e criativamente a obra de Caio (incluindo indagações sobre os limites de tal obra), Daniel Furtado, de modo arguto e sensível, dá mais uma prova de que não há só um Caio, mas muitos.

Caio não está em repouso, mas em trânsito.

Há várias narrativas-Caio: literariamente, cenicamente, e na movência entre esses advérbios.

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